Empresa pede que ações de cobrança sejam suspensas de forma imediata por um período inicial de 180 dias.
A 123milhas entrou, na tarde desta terça-feira, com pedido de recuperação judicial em tutela de urgência por meio da 1ª Vara Empresarial de Belo Horizonte, em Minas Gerais, como antecipou o colunista do GLOBO Lauro Jardim.
A solicitação é que todos os processos de cobrança movidos contra a empresa sejam suspensos antecipadamente, e por um período inicial de 180 dias.
De acordo com a ação, que também inclui a holding Novum — que possui a integralidade das quotas que integram o capital social da 123milhas— e a Art Viagens, conhecida como Hotmilhas — uma das principais fornecedoras e devedora solidária da agência de viagens —, o valor inicial da dívida informado é de mais de R$ 2,3 bilhões.
Nathalia Ribeiro, coordenadora da área de Contencioso Empresarial e Arbitragem do Allaw Advogados, explica que, agora, o juiz irá analisar o pedido a fim de autorizar ou não o processamento da recuperação judicial, determinando a suspensão das ações e execuções que levem à penhora de bens.
Embora esse recurso seja uma alternativa para evitar que a empresa quebre, não há nenhuma previsão de quando os compradores de pacotes poderão ter acesso novamente aos valores investidos.
— Os créditos dos consumidores vão estar sujeitos às condições de pagamento que serão votadas no plano de recuperação judicial, que envolvem um deságio, um período de carência e um período de parcelamento — comenta.
Na segunda-feira, a companhia fez uma demissão em massa em seu quadro de colaboradores e informou que estava “trabalhando para, progressivamente, estabilizar sua condição financeira”.
Mais de 5 milhões de clientes
No pedido de recuperação judicial, a 123milhas disse que atende cerca de 5 milhões clientes por ano. Somando os empregados ainda de Novum e da Art Viagens, o número de colaboradores diretos é de 427 em Belo Horizonte.
Segundo o documento, as requerentes admitem que enfrentam a pior crise financeira desde suas respectivas fundações, observando “aumento considerável de seus passivos nos últimos anos”.
A 123milhas confirma ainda que um dos problemas que culminou na insustentabilidade do negócio foi a crença errônea de que os clientes que comprassem passagens flexíveis, sem data específica, a preços mais baixos que os praticados no mercado, se fidelizariam à empresa e adquiririam serviços acessórios, tornando a venda vantajosa.
Na ação, a agência confessou acreditar “que para cada voo vendido, o cliente também adquiriria outros produtos atrelados à viagem (reservas de hospedagem, passeios etc.), mas isso acabou não ocorrendo na prática”.
Também observou “que o cliente do produto Promo123 é diferente dos demais clientes da companhia, uma vez que apenas 5% dos clientes frequentes da 123milhas efetivamente compraram os produtos do Programa Promo123, percentual muito inferior ao previsto e que impediu a efetivação do cross sell (venda cruzada) esperado”.
A empresa concluiu que, em tal contexto, “se viu impossibilitada de emitir as passagens aéreas, pacotes de viagem e os seguros adquiridos pelos clientes do Programa Promo123, especialmente nos prazos contratados”, optando por tirar o Programa Promo123 do ar e entrar com pedido de Recuperação Judicial para cumprir tais obrigações de forma organizada”.
Especialistas do mercado de turismo são taxativos ao afirmar que não há viabilidade em oferecer pacotes e passagens aéreas para prazo superior a 12 meses, já que os sistemas de reserva não autorizam a confirmação. O que a empresa fazia, portanto, era vender pacotes com prazos mais longos, sem nenhuma garantia que seria capaz de concretizá-los no futuro.
Regime de urgência
Com o pedido de recuperação judicial em regime de urgência, a 123milhas tem por objetivo, inclusive, suspender pedidos dos órgãos de defesa do consumidor cobrando ressarcimento a clientes afetados pela suspensão dos pacotes flexíveis e recebendo vouchers como ressarcimento.
Para destacar a importância do deferimento do pedido pelo juiz, a petição ressalta que, “apenas em Belo Horizonte/MG, são ajuizadas, em média, quatro ações judiciais por hora” contra a 123milhas. Admite ainda que a suspensão da emissão dos bilhetes Promo afetou a credibilidade da companhia, o que levou à redução drástica das vendas e ao vencimento antecipado de contratos com fornecedores.
Mesmo assim, ao se apresentar como um dos dez maiores websites brasileiros de comércio eletrônico que conseguiu movimentar R$ 6,1 bilhões em 2022 e se tornou uma das maiores agências on-line de viagens (OTAs -Online Travel Agency, em inglês) do Brasil, a companhia defende ser “cristalina a viabilidade econômica” para manter a atividade empresarial e obter lucros com sua atividade.
Tabata Fagundes, advogada da Securato & Abdul Ahad Advogados, destaca que, se o juiz não enxergar que a empresa tem capacidade de se recuperar financeiramente e continuar operando, pode não autorizar a recuperação judicial. Para ela, ainda que o pedido seja aceito, a imagem da agência ficará abalada no mercado.
— Tudo vai depender da movimentação que a empresa vai ter de entrada de dinheiro para que possa fazer frente às suas obrigações. Se passar a descumprir deveres que tem com consumidor, a recuperação judicial pode não ir para frente — sugere.
Lembre o caso
Pouco mais de uma semana atrás, a agência on-line de turismo anunciou a suspensão de bilhetes de pacotes flexíveis da sua linha Promo, com previsão de embarque entre setembro e dezembro. A medida decepcionou inúmeros clientes, já que muitos tinham reservado e quitado hospedagens e passeios nos destinos pretendidos.
O fato levou Procons do Rio de Janeiro e de São Paulo a cobrarem explicações da companhia, assim como os Ministérios da Justiça e do Turismo.
Ao contrário do que determina o Código de Defesa do Consumidor, a 123milhas não ofereceu a possibilidade de os clientes escolherem como desejariam ser recompensados: através de cumprimento forçado imediato, recebimento de produto ou serviço semelhante ou devolução de dinheiro com correção monetária. A empresa simplesmente informou aos consumidores que eles iriam receber um voucher para uso na própria plataforma em até 36 meses.
De acordo com a advogada Luciana Atheniense, algumas das pessoas representadas por ela receberam “vouchers picados”. Em um dos casos, uma compra de uma viagem de R$ 2 mil foi devolvida em quatro vales de R$ 500, que não poderiam ser usados juntos. A medida, segundo ela, desrespeita toda a legislação de direitos dos consumidores.
Na ação, a 123milhas alega enfrentar uma crise “momentânea e pontual” e destaca que a “liberação de recursos eventualmente penhorados em contas e aplicações financeiras” tem importância econômica e social “para ajudar a manter o regular funcionamento da economia brasileira”.
O advogado especializado em direito do consumidor e diretor jurídico do Instituto Brasileiro de Cidadania, Gabriel de Britto Silva, aponta que, em caso de falência, a prioridade de pagamentos é dos trabalhadores, depois dos credores com garantias reais —normalmente bancos — e, por fim, dos credores quirografários, grupo que inclui consumidores e fornecedores.
— O ônus do revés de um negócio deveria ser suportado pelo fornecedor, jamais pelo consumidor vulnerável e hipossuficiente — avalia. — Era indiscutível que tal produto, base do sucesso da 123milhas, não era rentável. Em verdade, quem pagava as passagens dos que hoje viajariam eram consumidores que pagavam suas passagens para viajar daqui a dois ou três anos.
Em nota enviada ao GLOBO, a empresa informou que o pedido de recuperação judicial “tem como objetivo assegurar o cumprimento dos compromissos assumidos com clientes, ex-colaboradores e fornecedores”. Além disso, ao concentrar em um só juízo todos os valores devidos, a empresa avalia que chegará mais rápido a soluções com todos os credores para reequilibrar sua situação financeira.
Publicado por O Globo