Não há dúvidas que o futebol é o esporte mais popular entre os brasileiros e é parte de nossa cultura. Em 2022, o Campeonato Brasileiro levou cerca de 8 milhões de torcedores a comparecerem aos estádios. Em 2021, apenas Flamengo, Palmeiras, Grêmio, Corinthians e São Paulo, em conjunto, faturaram aproximadamente R$3.5 bilhões.
Mesmo com números impressionantes e com a sua relevância cultural, os clubes do futebol brasileiro acabam contraindo dívidas relevantes, resultantes, em muitos casos, de má gestão orçamentária, além de possuírem poucas opções de captação de recursos disponíveis para outros players internacionais e de mercado, tais como os clubes de futebol europeus, que podem ser comprados e vendidos livremente, captar recursos junto ao mercado financeiro e, inclusive, abrir capital em Bolsa de Valores. Além disso, atualmente os clubes de futebol tem acesso limitado a empréstimos bancários em razão de seu histórico de insolvência. Grande parte disso decorre do fato de os clubes de futebol brasileiro funcionarem como uma associação civil, sem fins lucrativos. A direção do clube tradicional é eleita por um grupo de sócios, que assumem cargos não remunerados e, muitas vezes, não possuem as competências necessárias para assumir tal posto.
Em vista disso, a Sociedade Anônima de Futebol (“SAF”) foi concebida como um incentivo para facilitar a recuperação orçamentária dos clubes de futebol mediante instrumentos de mercado, a partir da injeção de recursos financeiros e instituição de regras de governança, além de outras vantagens.
A SAF é um tipo de sociedade empresária concebida na forma de Sociedade por Ações (conforme previsto na Lei 6.404/76), e regida por sua lei própria, a Lei 14.193, de 06 de agosto de 2021 (“Lei 14.193/21”). A sua principal diferença para uma Sociedade Anônima é o seu objeto, que é constituído, primordialmente, por atividades relacionadas à prática do futebol feminino e masculino em competições profissionais.
Além disso, a SAF também poderá operar a partir da obtenção de receitas decorrentes das transações de seus atletas profissionais e exploração de seus ativos e direitos, como o estádio de futebol, além de outras atividades que sejam ligadas à prática do futebol, como a criação de escolinhas para formação de futuros atletas.
Vale ressaltar que a transformação dos clubes de futebol em SAF, ou até mesmo a adoção desse tipo jurídico e modelo de gestão por novos clubes que surgirem, é facultativo.
Entre algumas das características relevantes da SAF, descritas na Lei 14.193/21, estão:
· Como qualquer Sociedade Anônima, tem o seu capital dividido em ações e a responsabilidade dos acionistas fica limitada ao preço da emissão das ações por eles subscritas ou adquiridas. Seu capital social poderá ser formado em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação;
· Poderá ser constituída de três formas: (i) pela transformação do tipo jurídico do clube ou sociedade anterior; (ii) pela cisão do clube e transferência do seu patrimônio para a SAF; e (iii) pela iniciativa de uma pessoa natural ou jurídica, ou de um fundo de investimento interessado;
· É obrigatória a existência e o funcionamento permanente de um Conselho de Administração e de um Conselho Fiscal, diferentemente de uma Sociedade Anônima de capital fechado;
· O acionista controlador de uma SAF não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra SAF;
· O acionista não controlador que detenha 10% (dez por cento) ou mais do capital votante ou total da SAF poderá ter participação em outra SAF, porém não terá direito a voz e voto nas assembleias gerais destas companhias, assim como não poderá participar da administração, direta ou indiretamente;
· Caso o acionista seja pessoa jurídica e detiver participação igual ou superior a 5% (cinco por cento) do capital social da SAF, deverá informar, a esta e à Confederação Brasileira de Futebol, sua qualificação completa e os dados de contato da pessoa natural que, direta ou indiretamente exerça o seu controle ou que seja a beneficiária do investimento;
· No âmbito do Conselho Fiscal, Conselho de Administração e da Diretoria da SAF, a Lei 14.193/21 proíbe certas pessoas de integrá-los em razão de conflito de interesses, quais sejam: (i) membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como órgão executivo, de outra SAF, de outro clube de futebol ou de entidade da administração; (ii) atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo vigente; (iii) treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com clube ou SAF; e (iv) árbitro de futebol em atividade; e
· A SAF que tiver receita bruta anual de até R$ 78 milhões poderá fazer a publicação obrigatória de atos societários de forma eletrônica, devendo mantê-los também em seu website, pelo prazo de 10 (dez) anos.
Algumas das principais vantagens relacionadas à SAF são:
· Possibilidade de acesso a recursos por meio da emissão de ações e debêntures;
· Possibilidade de adoção do regime de recuperação judicial, visando planejar e facilitar o pagamento das dívidas;
· Submissão a um regime tributário mais vantajoso, por meio do custeio de uma alíquota única de 5% (cinco por cento) sobre a receita mensal dos clubes visando englobar INSS, IRPJ, PIS/PASEP, CSLL e o Cofins; e
· Possibilidade de remuneração de sua diretoria executiva, o que é vedado no âmbito das associações civis sem fins lucrativos, possibilitando a contratação de gestores profissionais e mais capacitados ao cargo, atraindo investidores e profissionalizando a gestão futebolística.
Para captação de recursos por meio de emissão de ações, a Lei 14.193/21 é expressa ao permitir à SAF apenas a emissão de ações ordinárias da classe A. A subscrição das ações é exclusiva do clube ou da sociedade que constituiu a SAF originariamente.
Em contrapartida, no caso específico da captação de recursos por meio da emissão de debêntures, a Lei 14.193/21 inovou ao criar as chamadas “debêntures-fut”, que funcionarão de acordo com as seguintes características:
· Remuneração por taxa de juros não inferior ao rendimento anual da caderneta de poupança, sendo permitido estipular, cumulativamente, remuneração variável, vinculada ou referenciada às atividades ou ativos da SAF;
· Prazo de resgate igual ou superior a 2 (dois) anos;
· Vedada a recompra pela SAF ou por parte a ela relacionada, bem como a liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”);
· Pagamento periódico de rendimentos; e
· Registro em sistema autorizado pelo Banco Central do Brasil ou pela CVM.
As debêntures-fut são uma forma interessante de captação de recursos pela SAF, visto que possibilitam ao torcedor investir em seu clube, que posteriormente devolverá o valor no prazo determinado, acrescido de juros e correção monetária previamente determinados.
Saliente-se que para o caso específico de emissão de debêntures pela SAF, a Lei 14.193/21 prevê expressamente que todos os recursos advindos desse meio devem ser revertidos para o desenvolvimento de atividades da SAF, bem como ao pagamento de despesas e dívidas de atividades típicas e previstas na Lei ou no estatuto social da SAF. Mais um incentivo para manter as contas em dia.
Já no âmbito tributário, há outra inovação trazida pela Lei 14.193/21 – o Regime de Tributação Especial do Futebol (“TEF”). O TEF unificou, em um único imposto, o IRPJ, a Contribuição para o PIS/Pasep, CSLL, Cofins e INSS. O TEF conta com alíquota mensal de 5% (cinco por cento) nos 5 (cinco) primeiros anos, que é reduzida para 4% (quatro por cento) a partir do sexto ano. Nos primeiros 5 (cinco) anos a alíquota incide sobre todas as receitas da SAF, exceto sobre a cessão de direitos de atletas, que só a partir do sexto ano é incluída no cálculo.
Mais recentemente, no dia 10 de novembro, a CVM sediou o “1º Seminário Brasileiro Sobre Futebol, a Lei da SAF e o Mercado de Capitais”. O evento teve foco na mudança dos formatos de negócios dos clubes do futebol brasileiro.
O presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica -CADE, Alexandre Cordeiro Macedo, destacou que “O Brasil pára para o futebol. Sabemos que é um mercado importante para o consumidor, por conta da paixão pelo esporte e pelos valores. O consumidor tem direito a um mercado justo e limpo, com bons campeonatos e bons times. Isso se faz através de investimento, livre iniciativa e da concorrência”.
Por outro lado, Alexandre Rangel, Diretor da CVM, também ressaltou: “Trazendo para a interseção entre a indústria de fundos e a SAF, é importante observar a Agenda Regulatória da CVM. Talvez o assunto mais aguardado seja o novo Regime Regulatório de Fundos de Investimento, em que promovemos diversas modernizações e simplificações, agregando maior segurança jurídica a esta indústria tão relevante”.
Com a vigência da Lei 14.193/21 e a criação das SAFs, novas oportunidades em diversos setores surgem para este mercado. Os clubes de futebol passam a obter novas opções para refinanciar suas dívidas e para adquirir uma gestão profissional, treinada para gerir o orçamento de uma empresa. Além disso, abre espaço para investidores que eventualmente se interessem por um nicho de mercado tão importante e popular em nosso país e com grande perspectiva de crescimento e valorização caso seus problemas estruturais sejam endereçados.
Em suma, as SAF chegam no cenário do futebol brasileiro como uma “luz no fim do túnel” para a maioria dos clubes. Atualmente já temos exemplos de clubes brasileiros que se tornaram SAF com resultados positivos. Red Bull Bragantino (antigo Bragantino) e Cruzeiro são exemplos claros do desenvolvimento que os clubes-empresa podem trazer ao futebol brasileiro. No caso de ambos os times, anos de ingerência e profunda crise administrativa afetaram o seu sucesso em campo e popularidade com as respectivas torcidas. É notória a diferença na administração dos clubes após a transformação em SAF, visto que o sucesso administrativo é refletido também no desempenho em campo.